terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Biografia ficcionada

Olhou para o espelho. A imagem que este reflectia era de uma mulher de 70 anos, de olhar angustiado, massacrado pelas mudanças incertas da vida. O rosto encontrava-se magro, rugoso, de peles descaídas, como as pontas de um “choram envelhecido”, marcado pelos traços que o destino lhe deu.


O seu raro cabelo, oleoso, já não era suficiente para cobrir a cabeça. As suas mãos ásperas, calejadas e secas do duro trabalho do campo que a fatigava todos os dias, não disfarçavam os anos os anos que já tinham passado por si. As suas veias faziam relevo nas costas das suas mãos doridas.

Aquela figura trazia-me a visão de uma árvore que morre lentamente sem água. O seu aspecto era sombrio, era benevolente, triste, gentil, parada, mas nobre.

As roupas que ela usava eram simples: umas calças de bombazina repletas de pequenos buracos, e uma camisa abotoada até haver botões. Por cima se compunha com uma bata comprida, com dois laços que traçavam no interior, atavam atrás das suas costas.
Suas pernas já enferrujadas e pés pesados, deixavam-lhe um andar coxo e enfraquecido.
Não era um rosto jovem e belo que há muitos anos a encantava, mas tinha algo de especial. O seu rosto contava histórias! Cada sulco, cada traço vincado no seu rosto trazia-lhe a memória os momentos bons e maus que tinha vivido, os rostos jovens e lisos daqueles que tinham partido cedo demais, os rostos de quem amara e de quem a amara, dos, que já tinham partido, os rostos daqueles com quem se desencontrara ao longo da grande viagem da sua Vida.
Vivia numa localidade rural, perdida no meio da serra, no interior do país, onde a, luz e a água canalizada só chegaram um tempo depois. Todos os dias aquela pobre senhora atravessava a serra dezenas de vezes, para trazer a água que passava rente aos calhaus que enfeitavam o rio. Com o cântaro as costas, parecia nunca se cansar…
Provinha de uma família humilde, onde a grande felicidade era conseguirem todos terem um prato de comida na mesa para o sustento dos seus três filhos. Todos os dias saía de sua casa para colher umas pinhas e uns troncos. Acendia a sua fogueira e ali ficava horas sem fim a olhar para cada chama, desabafando o seu dia ao sabor do calor que esta lhe transmitia. Naquela fúria das chamas, pensava na solidão da sua vida, sem televisão, sem rádio, sem uma única notícia. Para ela, o mundo era aquela serra, os seus filhos e o seu marido que viajava para ganhar o pão para a casa e que simplesmente a visitava uma, duas vezes por mês. Era isso o seu mundo…o seu pequeno mundinho, que parecia do tamanho de uma caixa de fósforos.
A mobília era reduzida, tosca e defeituosa, feita á mão pelo seu pai falecido. Pastor de profissão e no pouco tempo livre, entretinha-se a trabalhar a madeira para oferecer aos seus filhos. As roupas destes eram poucas e tinham sido costuradas pela mãe. Cheias de remendos, um pano de cor retorcido com linha de outra cor. Eram lavadas vezes sem conta, para as poderem usar sem o odor do suor.
O homem com quem casou, era o seu único amigo de infância, mas este cansado de se sentir preso pelas montanhas da serra que cercavam a paisagem e que escurecia os seus dias, decidiu tornar-se vendedor e percorrer o mundo. Ela não o podia acompanhar, o que lhe trazia muitas horas de solidão. Mas um dia conseguiu sair das “grades” da montanha e partir para uma vila mais civilizada. Um novo mundo rodeou os seus olhos e a sua mente.

Porem secretamente na sua alma sentia saudades das montanhas, das terras que cultivara durante anos, das suas couves tenras que apanhava ao cair do orvalho, da solidão e da serenidade da serra onde viveu a sua juventude e permaneceu ainda no inicio da sua velhice. Sentia saudades de se sentar debaixo de um pinheiro manso ouvindo o uivar daqueles cães perdidos serra abaixo, serra acima, do mungir das vacas que davam o leite para sustento dos seus filhos, de passar horas sentada no chão seco da serra a cortar a lã das sua ovelhas, a ver o sol a esconder-se por detrás dos ramos verdes e luzidios do orvalho, de pegar na foice e cortar a erva para alimentação das suas vacas prenhas que não podiam sair para a pastagem, de pegar no ansinho para trazer o mato para a cama dos seus animais e crias, sem que tivesse de se preocupar se aparecia alguém ou não, pois ali não via vivalma. Só se atrevia quem nascera naqueles caminhos. Ninguém conhecia aquele mundo de longa distancia…ninguém conhecia o mundo desta arrastada senhora!

A sua nova vivencia naquela vila, provocara-lhe um desaforo de saudades…pois estava neste momento a presenciar um novo mundo…uma nova vida….uma fantasia que se estendia, alargando de mais as suas ideias… e as saudades do seu alto da serra.
A diferença de idades dos seus filhos não era muita. O mais novo, era o António, tinha 9 anos, o Manuel tinha 11 e a Alice estava perto dos 14. A mudança também os comoveu, mas estavam os três felicíssimos, pois na serra não tinham ninguém o que nunca lhes foi dada a oportunidade de saberem o que era uma escola, nem um amiguinho. Nem mesmo aquela senhora, mãe daquelas 3 crianças que agora se via obrigada a comprar uma lista de material escolar para ensino dos seus filhos. Há muitos anos atrás ela tinha feito o 4º ano de escolaridade, mas na altura não havia canetas nem lápis, escreviam com uma pena molhada num frasquinho de tinta preta, desenhando as letras redondinhas numa “ardósia”, que por vezes chegavam perto da professora para apresentar os seus trabalho e nem uma letra já tinham, acabando por levar desenas de reguadas e puxões de cabelo.

Tal como os sapatos, era algo que ela nunca vira, nem nunca lhes tinha feito falta. Estivesse sol, chuva, neve, ou gelada, os pés estavam de tal maneira calejados que não sentiam. Tudo o que ela começara a viver nesta pequena vila era uma novidade, uma coisa fora do normal, que lhe apertara o coração, apesar de estar feliz estava deprimente, e a sua cabeça não se erguia. A solidão cobria-a de cinzento…
Passados três meses da sua mudança sentiu-se mal, deitada na cama, rodeada pelos seus entes queridos que dela se despediam lacrimosamente, pedindo a deus forças para ela, o seu rosto idoso, cansado, repousava sereno. Fechou os seus olhos, duas lágrimas encharcaram os cantos, ofuscando o seu luzir. Apertou as mãos dos seus filhos, sorriu…e ao seu último suspiro, morreu feliz…na paz e de consciência tranquila.

Sem comentários:

Enviar um comentário